Cigarro de Utopia

Fume seu cigarro. Use o que quiser. Esse batom vermelho é sempre o meu.
Fume seu cigarro, meu caro. Em pé ou deitado, de pernas bem abertas só eu.
Fume seu cigarro que eu fumo o meu. Você aí, eu aqui. Sempre um breu.
Fume seu cigarro amargo. Busque no fulgor da juventude grandes afagos.
Fume seu cigarro em qualquer casa. Só ao meu lado é que tem toda a graça.
Fume seu cigarro em qualquer posição. Eu me rio de todas em longa proporção.


Chuva de Meio-Inverno

“Chove. Não paro de observar o movimento intenso das nuvens. Da janela do penúltimo andar vejo as pessoas correndo e a cidade num pequeno tumulto. Fim de expediente. Daqui alguns minutos farei aquela maldita prova e a minha cabeça estará inteiramente no conforto da minha cama. Lendo um bom livro.

Quando chove fico serena, nunca soube explicar o porquê. E se choro, de repente meu olhar se prende em algum canto ou pensamento e toda aquela lágrima seca no meu rosto. Chove sem parar.”

Sonhadora

"Pés fora do chão...
Voando, lá vou eu.
Ora aqui, ora ali
Nômade de mim.
E num instante!
Perco-me e não há fim.."

Histórias de Fim de Tarde: Café com Bolacha

“Abro a porta da frente. Uma brisa suave e gélida bate em meu rosto,faz meu corpo estremecer. Ao redor, apenas mato e cavalos no pasto. Respiro fundo tentando captar toda a essência da mãe natureza. Agradeço por ter os olhos abertos por mais um dia. Ao longe o sol se põe, e a chaleira apita num repente como que me acordasse de um sonho intenso. Corro até a cozinha, o som das minhas chinelas arrastando no chão, ecoando pela sala que atravesso. É bem solitária minha vida, mas há uma paz nessa solidão que faz minha tristeza ser mais do que tristes canções. Sou feliz com a minha casinha de campo, minhas galinhas, minhas verduras. Que sensação agradável. O cheiro do café invade a casa, aquece mais que cobertor. Dirijo-me à varanda e sento na velha cadeira de balanço que dá vista para o lago. Pensamentos nostálgicos me invadem e um sorriso leve, quase um suspiro, transparece em meus lábios. Eu era jovem. Minha pele era outra. Meus sonhos permaneceram os mesmos. Tantos erros cometi. Os caminhos mudaram, o destino talvez tivesse sido o mesmo. Tomo um gole do meu café e como algumas bolachas de sal e água. Meus cigarros não me levaram a nada, apenas atenuaram a dor e a insatisfação. A vida era estressante, minha saúde nunca foi a mesma. Uma lágrima escorre. Surpreendo-me. Não tive filhos nem marido. Atirei-me em muitos poços e levantei de todos. Estou velha. Meu amor por ele, sempre o mesmo. Meus lábios logo perderão a cor, meu corpo não mais será quente. Secarei. Poderia ele ter visto isso um dia acontecendo, tão cedo? Poderia ele ter pensado nessa vida calma no fim de tudo? Um sopro passa por meus ouvidos. É Ela. Veio me buscar. Respiro o ar puro mais uma vez, tomo o resto do meu café. Estou pronta, depois de ter vivido amedrontada. Sou sábia de todas as coisas, nada mais tenho que fazer aqui. Fecho os olhos com ternura, chamo-a. Uma certa leveza. A tempestade me carrega e num repente se amansa. Cheiros de perfumes me envolvem. Encantam-me. E no fim, um abraço doce e afável como se tivesse o mundo inteiro em si. Meu corpo relaxa, adormece na cadeira. Nada vi, apenas senti. Tudo foi essência, que me transportou para algum lugar além de mim. Algum lugar aonde corpos não existem, apenas a consciência. Sei que apenas uma coisa desejei. Encontrar ele de novo.”

Histórias da Madrugada: Algo Me Chama

"Mais uma xícara de chá para a minha ansiedade, se eu tivesse paciência para isso. Opto seguidamente por xícaras de café e muitos cigarros. Papai certamente ficaria preocupado se soubesse como tenho destruído a mim mesma nos últimos tempos. A verdade é que tudo foi escolha minha, mesmo esse cúbiculo mofado e cheio de vizinhos insuportáveis. É o próprio inferno. Reviso muitas vezes o que falar na entrevista de emprego tão esperada. Finalmente vou trabalhar como professora de francês. Já sei o esperar se conseguir a vaga, apenas não sei o que esperar de mim se isso realmente acontecer. Amasso o toco de mais um cigarro. Quase quatro da matina e o sono não vem; que estrago, é um desgaste para minha pele mas já virou quase rotina. O celular ressoa no silêncio da kitinete. Atendo. É ele. Como a extensão da minha própria consciência. Acordo suada. Olho para os lados e me vejo sozinha. Foi apenas um sonho."